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A Incompreendida Cegueira da Experiência Clínica: Eficácia

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É comum médicos afirmarem de forma eloquente e pretensiosa que “estou tendo ótimos resultados com tal medicação” ou “em minha experiência a conduta é benéfica”. No entanto, para grande parte das circunstâncias mencionadas, é impossível perceber benefício a partir da experiência. 

A experiência é cega a benefícios de condutas voltadas para melhorar prognóstico.

Quando se trata de controle de sintomas, o benefício da conduta for grande, consistente e o efeito for imediato, é possível que o médico consiga notar o impacto a partir de observações clínicas. Por exemplo, morfina para uma dor intensa. O controle de sintomas é consistente (quase em todos), de grande magnitude e imediato. A rapidez  de resposta permite que o observador perceba com mais clareza a relação causal entre intervenção e resultado. 

Este é o caso do aprendizado por jogo. Uma jogada muito errada ao xadrez quase sempre resulta em uma derrota rápida. Por isso que jogadores conseguem aprimorar seu jogo a partir da experiência.

No entanto, estas são situações quase óbvias, que não requerem muito argumento. Não são nestas situação que médicos usam de forma eloquente o argumento da experiência clínica.

O argumento da experiência clínica é utilizado nas situações de maior incerteza e quando não há evidências científicas. E são exatamente nestas situações que é impossível se notar o benefício (ou malefício) a partir da observação clínica. 

Estas são situações em que a intervenção acontece no presente, a fim de reduzir (ou aumentar) o risco no futuro: não é efeito imediato. Segundo, em se tratando de futuro, o benefício é muito mais incerto. São situações probabilísticas, que sofrem da incerteza do “número necessário a tratar”. 

Nestas situações, a prática não incrementa nossa capacidade de tomada de decisão. Pelo contrário, a tentativa de criar conceitos de eficácia com base na experiência representa um bom exemplo de viés de confirmação. 

Nestas situações, usar a experiência é uma forma de desaprender com base em ilusão prática.

Em situações prevalentes (melhora de sintoma), o NNT tende a se aproximar do 1. Em situações incidentes (melhora do futuro - prognóstico), o NNT tente a se distanciar do 1 no sentido do infinito.

Isto acontece por dois motivos. Nas situações prevalentes todos os pacientes estão precisando do tratamento. Mas na prevenção de eventos futuros, apenas uma pequena parte dos pacientes realmente precisa do tratamento: aqueles que sofrerão o desfecho futuro. Mas como não sabemos quem são, tratamos todos e muitos que não precisariam acabam sendo tratados, aumentando o NNT para se obter um benefício. Segundo, aliviar um sintoma é usualmente mais fácil do que prevenir um desfecho, portanto o tamanho do efeito de tratamentos de sintomas presentes é maior do que o da prevenção de eventos futuros. 

Um grande exemplo atual é a (cada vez mais comum) afirmação de cardiologistas de que seus pacientes com insuficiência cardíaca crônica têm se beneficiado da nova medicação intitulada comercialmente de “Entresto”. Já discutimos a falácia do studo PARADIGM-HF, que concluiu pela eficácia de uma nova droga (sacubitril) a partir de uma grave assimetria de terapia adjuvante entre os grupos droga e placebo (leiam postagem prévia). O estudo demonstrou redução do combinado de morte ou internamento por insuficiência cardíaca, dois desfechos futuros.

A falácia metodológica do estudo gera incerteza. Para compensar essa incerteza, cardiologistas têm usado de sua eloquência, tendo sido cada vez mais comum a frase: “em minha experiência tenho tido ótima resposta à nova droga”. 


Análise Matemática da Frase


O NNT do estudo PARADIGM-HF é 21 para redução do combinado de morte ou internamento, um benefício que seria de grande magnitude. Mas como um médico conseguiria perceber um NNT de 21 na prática clínica.?

Imaginem que ele tivesse 21 pacientes usando Entresto e 21 pacientes sem usar Entresto. Em 20 de cada grupo a evolução seria a mesma, apenas se perceberia a diferença de evolução no vigésimo primeiro paciente de cada grupo. Isto é imperceptível na vida cotidiana. 

Esta é a “falácia da impressão clínica prognóstica”, pois é impossível perceber 1 em 21 “a olho nu” ou “a olho clínico”.

Se pensarmos em 100 pacientes tratados em cada grupo, a diferença entre os grupos seria apenas de 4 pacientes. 4 em 100 pacientes: como perceber o fenômeno retratado na figura abaixo?





Certa feita um estatístico contou a história de seus dois filhos adotivos. A filha era uma criança que foi adotada na China. O filho era americano. Certa feita e menina falou: “meninas vem da China, meninos vem dos Estados Unidos.” A inocência da criança mostra um traço da mente humana: concluir com base em pequenas amostras. 

Parece caricatural a menina ter concluído isso? Mas é exatamente isso que médicos fazem, quando depois de três experiências consecutivas bem sucedidas concluem que algo funciona. 

Por trás disso está o viés de confirmação. Como a prática clínica não é um ambiente científico experimental, qualquer conduta é baseada na crença de benefício. Se prescrevo algo, é porque acredito no benefício, seria anti-ético prescrever algo em que não acredito. Portanto, a prática clínica é um ambiente naturalmente crente, predispondo ao viés de confirmação. Ao partir da crença e observar o mundo a nossa volta, cairemos na armadilha cognitiva de procurar evidências a favor do que acreditamos. Registraremos em nossa memória os pacientes que evoluíram de acordo com nossa crença e validaremos nossa conduta, sem computar simetricamente pacientes que rejeitaram nossa crença. Quando esses aparecem é porque eram muito graves, nem todo paciente responde mesmo.

Isso é diferente do ambiente científico, em que partimos do ceticismo e só rejeitamos a hipótese nula quando a evidência está muito além do acaso e de efeitos mediados por vieses. 

Para complicar, a prática clínica é repleta de viés de desempenho. A tendência do médico preocupado que muda o tratamento do paciente para Entresto é fazer outros aprimoramentos em sua conduta, ajustar o diurético, orientar melhor a dieta. Portanto, mesmo que fosse possível perceber o resultado, seria impossível saber o que teria causado aquele resultado.


Conclusão


A experiência clínica tem um valor inestimável em medicina. Experiência é essencial na aplicação individual de um conceito científico, na percepção dos valores do paciente, na decisão compartilhada, na geração de uma hipótese diagnóstica. Mas não podemos banalizar e prejudicar o valor da experiência clínica pelo uso caricato e inapropriado. 


A experiência clínica é cega para efetividade de condutas prognósticas. E o médico ainda é cego em relação à limitação de sua própria experiência. 

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