Como primeira postagem deste ano novo, decidi escrever sobre o principal fenômeno da natureza: o acaso. Reconheço que pode parecer uma heresia falar de sorte ou azar em um blog científico. Porém essa aparência decorre do fato de que o acaso não recebe do pensamento comum o valor que merece. Há inclusive aqueles que julgam que o acaso inexiste: “nada é por acaso.”
No entanto, os matemáticos já demonstraram de forma irrefutável a existência deste fenômeno. Aliás, nem é preciso ser tão matemático assim. Jogue uma moeda para cima 10.000 vezes. Obviamente, perceberá que a moeda cairá com cara para cima a metade das vezes. Pode repetir esse experimento quantas vezes quiser, o mesmo sempre ocorrerá. Essa é uma simples prova de que não há um fator causal interessado que a moeda caia predominantemente em cara ou coroa. Se não há um fator causal, é tudo aleatório (acaso). E a prova de que o aleatório existe é que podemos predizer quantas vezes a moeda cairá em cara. É só saber a regra do jogo, ou seja, saber as leis de probabilidade.
O acaso está intimamente relacionado ao pensamento científico. Isto porque a função primordial da ciência é identificar associações causais, entender como os fenômenos acontecem. Neste processo é muito importante que o cientista leve em consideração que muitos fenômenos não possuem causa específica, se dão por obra do aleatório. Sendo assim, fazer ciência é diferenciar acaso de causa. Há coisas que decorrem de uma causa (fumar causa câncer) e há outras que existem por acaso. A utilização de metodologia científica adequada discrimina causa de acaso. Metodologia científica é uma forma de evitar erros de observação decorrentes de vieses ou do acaso. Isso se faz necessário, pois observações carentes de metodologia nos fazem concluir por falsas relações causais. E isto ocorre todo dia, a todo momento quando pensamos intuitivamente.
Por exemplo, quando julgamos que um paciente sobreviveu a uma condição grave devido a uma promessa que fizemos, estamos estabelecendo uma relação causal (promessa → sobrevida). No entanto, quase todo paciente (mesmo grave) tem alguma probabilidade de sobreviver. Na realidade, houve uma coincidência entre o paciente ter (aleatoriamente) sobrevivido e termos feito uma promessa. Mas o que costumamos fazer é uma análise retrospectiva enviesada, pensando que se o paciente sobreviveu, foi porque rezamos. E nos esquecemos (memória seletiva) de todos os outros casos em que promessas foram feitas e o paciente não sobreviveu.
O leitor neste momento deve estar me julgando cético ao afirmar que promessa não influencia na sobrevida. Mas só estou fazendo esta afirmação pois esta hipótese foi testada cientificamente. Revisão sistemática da Cochrane meta-analisou 10 ensaios clínicos em que 7.046 pacientes críticos foram randomizados para reza intercessória ou não reza: não houve associação entre reza e sobrevida. Essa é a beleza da ciência. Ciência nada mais é do que uma observação cuidadosa da natureza. Não temos o direito de simplesmente acreditar ou não acreditar. O que precisamos fazer é observar se o fenômeno é verdadeiro ou não. E a melhor forma de observar é por meio da metodologia científica, prevenindo vieses e a confusão entre acaso e causa.
Provavelmente a prece tem benefícios psicológicos ou espirituais para quem está rezando (não estou sugerindo que serve para nada), porém não reduz mortalidade. E este conhecimento a respeito dos efeitos da prece é muito importante, pois se houvesse associação causal com sobrevida, a prece deveria fazer parte dos protocolos assistenciais de pacientes críticos, como indicação classe I. Ao saber que não há esta relação causal, não precisamos estruturar nossos serviços para esta conduta, não precisamos montar um time de prece. Isto fica então a gosto do cliente ou da família, que deve rezar se isso os fizer sentir bem.
Neste ponto do texto, percebam que partimos do acaso, passamos pela ciência e chegamos na religião, de forma natural, em uma discussão que aproxima ciência e fé. Porém muitos religiosos preferem distanciar ciência e fé, pois desta forma fica mais fácil criar mitos e crenças de acordo com seus interesses, sem que haja uma filosofia por trás disso tudo. Pensar e procurar entender nosso universo, como ele funciona, não é uma heresia. Estudar cientificamente os efeitos da fé é um ato de respeito a esta prática comum a inúmeras culturas. Esconder-se atrás dos “mistérios da fé” é fugir da reflexão, congelar nosso cérebro e consequentemente nossa alma. Foi isso que quis dizer Pauster: "um pouco de ciência nos afasta de Deus, muito nos aproxima".
Um dos maiores equívocos de nosso pensamento intuitivo é a propensão de não reconhecer o acaso como um dos principais determinantes dos eventos a nossa volta, tal como abordado por autores como Leonard Mlodinow ("O Andar do Bêbado") ou Thomas Gilovich ("How We Know What Isn’t So”). Muitas vezes, inconscientemente, preferimos atribuir nosso destino a falsas relações causais, pois nos sentimos mais em controle quando pensamos entender o porquê das coisas. Porém às vezes não há um porquê, é tudo aleatório. Ou pelo menos uma mistura do aleatório com variáveis causais. Na realidade, o mundo é multivariado, não cartesiano, não determinístico, no sentido de que um fenômeno é provocado por uma multiplicidade de fatores: fatores causais mais o acaso. Nos modelos estatísticos multivariados, sempre há o resíduo, que é a variabilidade não explicada por nossas equações preditoras. Estes resíduos decorrem do acaso.
Um dos filmes mais brilhantes de Woody Allen é Match Point, uma apologia ao acaso. A metáfora é o match point do jogo de tênis, quando ganhar ou perder apenas um ponto pode determinar o destino de um jogo. Na primeira cena do filme, a bola bate na extremidade superior da rede, se desloga verticalmente para cima e a imagem congela. A partir deste momento, a bola começaria a descer, mas para que lado da rede? Aí entra o aleatório, determinando o destino daquela jogada. Poderia sera apenas o destino de uma jogada, mas muitas vezes o “efeito borboleta” se faz presente: um fato aparentemente de pequena importância promove grandes consequências, por uma reação em cadeia. O resultado de apenas um ponto em um jogo de tênis pode determinar seu destino final. Isso aconteceu quando uma tal seleção brasileira de voleibol perdeu o jogo quase ganho em uma dessas recentes olimpíadas. A vida é assim, um minuto a mais ou a menos pode determinar que der tempo de pegar aquele trem, no qual conheceremos o amor de nossa vida, poracaso. Um minuto é um pequeno detalhe que pode ter grandes consequências. A isso se chama de “efeito borboleta”.
O termo "efeito borboleta" decorre da metáfora de que o deslocamento de ar decorrente do simples bater das asas de uma borboleta pode provocar grandes fenômenos meteorológicos, se o ambiente estiver propício a isto. Neste sentido, o físico quântico Max Born, ganhador do Prêmio Nobel, afirmou que "o acaso é um conceito mais fundamental que a causalidade".
O termo "efeito borboleta" decorre da metáfora de que o deslocamento de ar decorrente do simples bater das asas de uma borboleta pode provocar grandes fenômenos meteorológicos, se o ambiente estiver propício a isto. Neste sentido, o físico quântico Max Born, ganhador do Prêmio Nobel, afirmou que "o acaso é um conceito mais fundamental que a causalidade".
Daí vem nosso insight espiritual, a mensagem que conecta ciência, acaso e fé. Com sua forma onipresente de ser, o acaso assume um caráter divino quando nos damos conta de que esta é a ferramenta com a qual Deus rege o mundo. Isso mesmo, Deus comanda o mundo de forma aleatória. Deus não seria mesquinho para castigar alguém provocando uma doença, ao atribuir uma condição de saúde plena a outra pessoa. Deus não provocaria uma grande terremoto do Haiti de forma proposital. Deus não fará com que o Brasil ganhe a copa do mundo de 2014, em detrimento de outras seleções. Deus nãoé brasileiro. Como bem demonstrado pelo filme filosófico-cômico de Jim Carrey, Almight, Deus ficaria louco se tivesse que decidir por tudo isso. A verdade é que de forma serena, Deus utiliza o acaso como a maneira de "determinar" nosso destino. O acasoé a ferramenta divina.
Sendo assim, neste início de ano, deixamos aqui a Oração do Acaso. Oremos para que em 2014 o acaso esteja ao nosso lado sob a forma de sorte. Em segundo lugar, desejo que saibamos reagir adequadamente quando o acaso se apresentar sob a forma de azar. Pois muito do nosso destino decorre das nossas reações ao acaso. Finalmente, devemos sempre nos lembrar que fenômenos causais existem e reconhece-los cientificamente, identificando as condutas (médicas ou cotidianas) que interferem em nosso destino. Nosso “destino” depende da interação entre nossas escolhas e o acaso.
Feliz 2014.
* Devo o título deste texto ao amigo-cientista Bruno Solano, que durante uma discussão filosófica apresentou a ideia.
* Este texto resume o conteúdo de nossa conferência durante o debate Medicina e Fé, promovido por Padre Bento no Hospital São Rafael. O vídeo desta conferência será publicado em breve neste Blog.
Feliz 2014.
* Devo o título deste texto ao amigo-cientista Bruno Solano, que durante uma discussão filosófica apresentou a ideia.
* Este texto resume o conteúdo de nossa conferência durante o debate Medicina e Fé, promovido por Padre Bento no Hospital São Rafael. O vídeo desta conferência será publicado em breve neste Blog.